sexta-feira, 10 de julho de 2009

A ordem do discurso, de Michel Foucault


No interior dos seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas ; mas repele para o outro lado das suas margens toda uma teratologia do saber. O exterior de uma ciência está mais e menos povoado do que julgamos : certamente que há a experiência imediata, os temas imaginários que trazem e reconduzem incessantemente crenças sem memória ; mas talvez não haja erros em sentido estrito, porque o erro não pode surgir e ser avaliado senão no interior de uma prática definida ; em contrapartida, há monstros que circulam e cuja forma muda com a história do saber. Numa palavra, uma proposição tem de passar por complexas e pesadas exigências para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de se poder dizê-la verdadeira ou falsa, ela deve estar, como diria Canguilhem, "no verdadeiro".

Perguntámo-nos muitas vezes como é que os botânicos e os biólogos do século XIX não puderam ver que era verdadeiro o que Mendel dizia. Mas Mendel falava de objetos, usava métodos, colocava-se num horizonte teórico que eram estranhos à biologia da sua época. Sem dúvida que Naudin, antes dele, já tinha avançado a tese segundo a qual os traços hereditários eram discretos ; porém, por novo ou estranho que fosse este princípio, ele podia fazer parte — pelo menos a título de enigma — do discurso biológico.
Mendel, por seu lado, constitui o traço hereditário enquanto objecto biológico absolutamente novo, graças a uma filtragem que nunca tinha sido utilizada até aí : ele isola o traço hereditário da espécie, isola-o do sexo que o transmite ; e o domínio em que o observa é a série indefinidamente aberta das gerações onde ele aparece e desaparece segundo regularidades estatísticas. Novo objecto, que convoca novos instrumentos conceituais e novos fundamentos teóricos. Mendel dizia a verdade, mas não estava "no verdadeiro" do discurso biológico da sua época : não era com base nessas regras que se formavam os objetos e os conceitos biológicos ; para que Mendel entrasse no verdadeiro e para que as suas proposições surgissem (em boa parte) exactas foi necessário toda uma mudança de escala, o desenvolvimento de todo um novo plano de objectos em biologia. Mendel era um monstro verdadeiro, o que fazia com que a ciência não pudesse falar dele ; ao passo que Schleiden, por exemplo, cerca de trinta anos antes, ao negar a sexualidade vegetal em pleno século XIX, fazia-o segundo as regras do discurso biológico e com isso formulava apenas um erro disciplinado. Pode sempre acontecer que se diga o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem ; mas não se está no verdadeiro sem que se obedeça às regras de uma "polícia" discursiva que temos de reativar em cada um dos seus discursos.

A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Fixa-lhe limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras.

(L’Ordre du discours - aula inaugural no Collège de France, ministrada em 02/12/1970 - Éditions Gallimard, Paris, 1971.) Tradução de Edmundo Cordeiro com a ajuda para a parte inicial do Antonio Bento

Para ler o este texto na integra clique no link:

A ordem do discurso

Para outros textos de Foucault:

http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/biblio.html

Para saber mais sobre Michel Foucault:

http://www.unb.br/fe/tef/filoesco/foucault/

Um comentário:

  1. Muito bom, isso serve pra todas as "disciplinas" não só para a biologia. As verdades são relativas,
    e passageiras, seria bom que isso fosse dito a todos desde o jardim da infância.

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