Foram necessários cinco anos de trabalho para o pediatra da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto (USP-RP) e sua equipe comprovarem que a inclusão do exame para a galactosemia no teste do pezinho é vantajosa também do ponto de vista econômico. Antes, porém, tiveram de conseguir uma informação muito mais básica sobre a enfermidade: o número de casos que surgem a cada ano no estado de São Paulo, dado anteriormente estimado apenas com base em levantamentos feitos no exterior.
Nessa primeira e mais trabalhosa etapa da pesquisa, os grupos de Ribeirão Preto e de outros três centros de triagem neonatal do estado analisaram amostras de sangue de 59.953 crianças nascidas em 2006, o equivalente a 10% dos nascimentos registrados por ano nos municípios paulistas. O levantamento inicial indicou que 158 recém-nascidos possivelmente apresentavam galactosemia. Um exame mais específico, porém, revelou que das 158 crianças apenas três tinham de fato a doença – e necessitavam de tratamento urgente. Essa proporção indica que cerca de um em cada 19 mil bebês paulistas nasce com uma das alterações genéticas associadas à galactosemia, o que corresponderia a quase 30 novos casos por ano no estado de São Paulo. É uma incidência relativamente baixa, mas superior à que se imaginava.
Quem tem galactosemia apresenta uma das 230 alterações já identificadas nas duas cópias do gene responsável pela produção da enzima galactose-1-fosfato-uridiltransferase (Galt). Essa enzima transforma o principal açúcar do leite, galactose, em outro açúcar, a glicose, usada pelas células como fonte de energia. A produção de enzimas Galt defeituosas ou em baixas quantidades leva ao acúmulo da galactose no sangue e nos tecidos. Em concentrações elevadas, a galactose gera compostos tóxicos que afetam o fígado, causando cirrose, e tornam opaco o cristalino (a lente natural dos olhos), provocando catarata. Surgem ainda consequências mais graves. Como a galactose não é convertida em glicose, os níveis deste açúcar no sangue caem muito. Com menos glicose e sob o efeito de compostos tóxicos, as células do cérebro começam a morrer, levando ao retardo mental.
As consequências indejadas dessa enfermidade, que custam caro ao sistema público de saúde e afetam a qualidade de vida das crianças e de suas famílias, podem facilmente ser evitadas ou reduzidas, desde que a galactosemia seja identificada nos primeiros dias de vida. “Basta substituir o leite materno por leite sem galactose, como o de soja, e evitar o consumo de alimentos que contenham galactose ao longo da vida”, explica a pediatra Gilda Porta, do Instituto da Criança da USP, que há 35 anos acompanha casos da doença.
Diante dessa possibilidade de intervenção simples e relativamente barata – uma lata de leite de soja custa cerca de R$ 30, enquanto o leite usado para crianças com fenilcetonúria sai por quase R$ 300 –, Camelo Junior vem defendendo nos últimos anos a inclusão do exame para galactosemia no teste do pezinho realizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Atualmente esse exame, oferecido gratuitamente para os recém-nascidos desde 2001, avalia a ocorrência de outras três enfermidades: fenilcetonúria, hipotireoidismo congênito e hemoglobinopatias. Três estados (Paraná, Santa Catarina e Minas Gerais) realizam também o exame para detectar fibrose cística, enfermidade que reduz a hidratação do muco e de outras secreções, afetando os sistemas digestivo e respiratório. “Nossos dados mostram que em São Paulo a galactosemia é tão frequente quanto a fenilcetonúria, que afeta um em cada 19 mil recém-nascidos”, diz Camelo Junior, comparando seus dados com os da equipe de Lea Zanini Maciel.
Determinada a incidência da galactosemia, o pediatra de Ribeirão decidiu verificar quanto a realização do exame custaria ao estado. Com a ajuda de Jair Santos, da medicina social, e de Alceu Camargo Junior e Cláudia Passador, da Faculdade de Economia e Administração da USP-RP, Camelo Junior pôs na ponta do lápis os gastos relacionados ao teste para galactosemia – valor do kit diagnóstico, do transporte até o centro de testagem, dos contatos telefônicos e do tempo de trabalho perdido pelos pais. Somou ainda as despesas decorrentes da detecção tardia da doença – custos de atendimento ambulatorial e de internação em unidade de terapia intensiva, gastos com cirurgias e medicamentos, além dos dispêndios com estrutura hospitalar –, tomando por base dados coletados ao longo de 20 anos de atendimento em diferentes unidades do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP-RP.
Economia - Somando os gastos, a testagem de 600 mil recém-nascidos sairia por R$ 937,3 mil, descontados os juros anuais. A identificação precoce da doença evitaria que as 17 crianças com a forma de galactosemia que evolui pior tivessem de passar por tratamento crônico e lhes permitiria levar uma vida produtiva. No total, representa uma economia de R$ 1,245 milhão ao sistema público, revelam os pesquisadores em dois artigos – um deles publicado no Journal of Inherited Metabolic Disease. “Detectar a doença nos primeiros sete dias de vida sai 33% mais barato do que tratá-la mais adiante”, afirma Camelo Junior, que atualmente trabalha para mostrar esses dados às autoridades públicas de saúde. “Não vou descansar enquanto não reconhecerem esses dados.”
Esses resultados, segundo o pediatra, representam apenas parte do trabalho que precisa ser feito para se conhecer a frequência com que essa enfermidade ocorre no país. “Outros estados deveriam realizar estudos semelhantes, pois a proporção observada em São Paulo não pode ser extrapolada”, diz. É que os defeitos genéticos associados à galactosemia são mais comuns nas populações de origem africana do que entre os descendentes de europeus. Por essa razão, é provável que sua incidência seja mais elevada, por exemplo, na Bahia do que nos estados do Sul do país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua participação é importante. Deixe aqui o seu comentário!